Exposição: 80 anos de Frei Tito

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Apresentação 

Frei Tito de Alencar.

Um jovem cheio de sonhos e ideias. Um homem que viveu intensamente seu tempo. Um cearense que despontou na história do país. Um mártir de uma igreja renovada. Um personagem que se projeta muito além de sua própria vida. Um símbolo da luta pela defesa dos direitos humanos e da democracia, que mantém viva a memória de tempos sombrios e, ao mesmo tempo, nos faz olhar para frente, para a necessidade de construir o futuro.  

Narrar a vida de Frei Tito é tentar alinhavar fios de uma trama que se estende muito além de sua própria existência e, é, portanto, inesgotável. Celebrar os 80 anos de nascimento de Tito é um esforço de mostrar ao mundo a vida de um jovem que, como tantos outros de sua época, foi brutalmente interrompida por um violento governo ditatorial. É sobretudo pensar em como essa trajetória ecoa ainda hoje.  

O fim da ditadura civil-militar abriu caminho para a redemocratização do país e, nesse processo, o Ministério Público passou por uma profunda reconfiguração de suas funções. A Constituição de 1988 consolidou o MP como instituição permanente e essencial à Justiça, responsável pela defesa da ordem jurídica, dos direitos fundamentais e dos interesses sociais indisponíveis. Nesse sentido, lembrar Frei Tito é também reafirmar o compromisso do Ministério Público com a democracia e com a preservação da memória, garantindo que violações do passado não sejam esquecidas, muito menos, repetidas.

     

    O texto que segue é uma espécie de “pincelada” sobre essa história, que pode ter como marco nascimento de Tito de Alencar Lima, mas que não tem fim. É, sobretudo, um convite à inquietação, à curiosidade e ao fomento de novas pesquisas. 

    1. Infância 

    (Arquivo 01) Fotografia da família durante o aniversário 

    O retrato de família no quintal da casa em que Tito nasceu – uma casa simples de portas para a rua Rodrigues Júnior, nº 364, no centro de Fortaleza, Ceará -, registrou o dia em que ele completou 12 anos. O ar despojado do menino, ao lado das irmãs Nildes, Nelza, Nilma e Nícia e com sua mãe, dona Laura, ocupando o lugar central da imagem, um espaço que cabe à matriarca da família. Um retrato que foi guardado com carinho pela família, como era comum, mas que ganhou ainda mais importância após o falecimento do caçula anos mais tarde.  

    Tito foi o caçula de uma numerosa família de 11 irmãos, dos quais apenas 11 chegaram à vida adulta. Dona Laura Alencar Lima e Ildefonso Rodrigues de Lima já estavam com idade avançada quando o último filho nasceu. O nome de imperador foi dado em homenagem a um tio, Tito Sobreira de Alencar (Arquivo 02) link para fotografia e inscrição no álbum).  

    Como era comum nas famílias numerosas, as irmãs mais velhas cuidavam dos mais novos e foi assim que Nildes, com cerca de 12 anos, experimentou a “maternidade” assumindo os cuidados do menino, construindo um laço que se preservou ao longo de suas vidas e exercendo um importante papel na formação intelectual, religiosa e política de Tito. Nailde, a quem Tito chamava de Daíde, o alfabetizou, como fez com inúmeras outras crianças.  

    Nascido em uma família católica, Tito cresceu frequentando a igreja e foi inscrito pela mãe na Congregação Mariana, dos filhos e filhas de Maria, na igreja do Cristo Rei, na capital cearense. 

    1. Juventude e atuação no Ceará 

    Egresso do colégio Tibúrcio Cavalcante, aos 12 anos Tito foi aprovado no Liceu do Ceará permanecendo na instituição entre os anos de 1958 e 1963, quando se mudou para Recife a fim de assumir a coordenação regional da JEC, finalizando seus estudos no Liceu Pernambucano. (Arquivo 03 – foto do jornal com os nomes aprovados). O Liceu do Ceará ocupava, naquele período, uma posição central na vida intelectual, cultural e política do Estado. O movimento secundarista, exercia papel de destaque nas mobilizações de lutas que ecoavam em diferentes setores da sociedade cearense. Entre elas, encabeçando importantes lutas como a aprovação da meia entrada estudantil.  

    Foi neste cenário que Tito conheceu a Juventude Estudantil Católica – JEC e estreitou laços com uma igreja comprometida com a justiça social. É bem verdade que a doutrina social da igreja já lhe havia sido apresentada pela irmã Nildes, mas foi na JEC que Tito aprofundou as leituras e discussões e iniciou um trabalho de articulação das bases.  

    Este é um período da vida de Tito menos conhecido, havendo, portanto, um vácuo de pesquisas e mesmo de levantamento de fontes. Ainda assim, encontramos um ou outro recorte de jornal, documentos das organizações estudantis guardadas pelos próprios militantes, livros que circulavam entre os membros da JEC em uma dinâmica de estudos que por si só, merece atenção, e que foram rabiscadas por Tito no auge de sua adolescência.  

    (Arquivo 04 – incluir fotos da revista Convivivm) 

    A História Oral foi sem dúvida o campo mais fértil encontrado por nós durante a pesquisa, primeiro por ter sido a chave de acesso a boa parte desta documentação e, sobretudo, por nos permitir acessar a um Tito menino, afetuoso, brincalhão, estudioso, aflito com as questões de seu tempo e comprometido com as mudanças sociais. Como lembra Alessandro Portelli (1997) a História Oral nos permite acessar não apenas os fatos, mas as teias de significações e foi assim que, a cada diálogo com os amigos de Tito, surgiam as histórias dos jogos de futebol, dos piqueniques, dos encontros na praia de Iracema para tocar violão e escutar os discos da Maysa, dos almoços na casa dos amigos. Momentos de lazer que eram intercalados com uma densa dinâmica de estudos, num ambiente intelectual bastante rico, em que os jovens definiam as leituras e discussões e faziam circular os livros, objetos que por aquela época ainda eram inacessíveis a boa parte da população.  

    (Arquivo 05 – INCLUIR TRECHO DA ENTREVISTA DE ROBERTO PONTES – CARTOGRAFIA DO CENTRO – 04:05 a 07:50) 

    Pouco a pouco também se descortinou uma espécie de cartografia dos afetos e da resistência na cidade de Fortaleza, que tinha como ponto central a Igreja do Rosário dos Pretos, no centro. Ali se reuniam quase que diariamente os jovens ligados a JEC e, após assistirem as missas, espalhavam-se pela praça Tibúrcio Cavalcante, popularmente conhecida como Praça dos Leões. Os pequenos grupos de amigos travavam ali árduas discussões sobre a política nacional e internacional, sobre as novidades literárias, sobre os avanços da ciência. Ocorriam também os flertes e as conversas mais intimistas entre os amigos. Jaime Libério, amigo de Tito, chama esses encontros de “quebra-casca”, um momento que não era tão espontâneo quanto poderia parecer, a princípio, mas fazia parte da estratégia de mobilização da JEC.  

    Além da Igreja do Rosário e da praça dos Leões, surgem nas falas a Praça do Ferreira e Praça da Bandeira (oficialmente praça Clóvis Beviláqua), como os espaços em que ocorriam as grandes manifestações da época. A escola de música Henrique Jorge, ao lado do Parque das Crianças, era frequentada por Tito e de muitos contemporâneos da JEC, que aprendiam ali a dominar algum instrumento musical ou o canto. Os grupos de estudo dividiam espaço com os jogos de futebol na chácara pertencente à família de Roberto Pontes no bairro do Monte Castelo e, tempos depois passou a ser realizado na casa da família Arruda, na av. Tristão Gonçalves – centro. A praia de Iracema era o espaço de lazer, dos encontros furtivos para falar da vida, tocar violão e escutar as novidades musicais da época. Mas era também o espaço da “juventude transviada” ou “dos rabos de burro”, como explica Jaime Libério.  

    Os piqueniques em Maranguape, na área do Educandário Eunice Weaver, em Baturité e no Pecém eram espaços privilegiados de sociabilidade dessa juventude, e mantinham uma dinâmica em que se revezavam os momentos de espiritualidade, os estudos e o lazer. Uma dinâmica que formou não apenas Tito, mas uma geração de cearenses que, ao longo da vida, mantiveram o compromisso com a transformação social.  

    (Arquivo 06 – INCLUIR TEXTO O LICEU DE TITO –JAIME LIBÉRIO) 

    1. Frei Tito e a luta pela democracia  

    Num momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é risco, muito mais é um testemunho.” 

    Carta denúncia escrita por Frei Tito sobre a tortura aos presos políticos no Brasil. São Paulo, março de 1970.  

    O golpe de 1964 ocorre quando Tito de Alencar já está fora de sua cidade natal, vivendo em Recife onde dedicava-se a coordenação regional da JEC, enquanto terminava o científico (que corresponde ao atual ensino médio), mantendo efervescente o trabalho de organização do movimento estudantil. Em 1966 comunica à família o desejo de ingressar na vida religiosa, na Ordem dos Dominicanos. No mesmo ano, parte para o convento da Serra em Belo Horizonte e, em 10 de fevereiro de 1967, realiza sua profissão de fé na ordem dos pregadores, tornando-se Frei Tito.  

    Dando continuidade à vida religiosa, Frei Tito mudou-se para o convento de Santo Alberto Magno, no bairro de Perdizes, em São Paulo. Neste período Frei Tito tornou-se próximo de Magno José Vilela, Ivo Lesbaupin, Oswaldo Augusto Rezende Júnior, Luiz Ratton Mascarenhas, Carlos Alberto Libânio Christo que se tornariam companheiros de fé, luta e de vida e que, pouco tempo depois, estariam, em maior ou menor grau, envolvidos com a resistência à ditadura civil-militar.  

    Frei Tito ingressou no curso de ciências sociais na USP, em 1969, fortalecendo ainda mais seu vínculo com o movimento estudantil, em um momento de recrudescimento da ditadura civil-militar. Em novembro daquele ano foi um dos 719 detidos durante o encontro da UNE, em um sítio, conseguido por ele – em Ibiúna- SP.  

    Crítico e combativo ante as aterradoras ações do regime militar, Tito tornou-se alvo de perseguição. Era constantemente vigiado, até que, em novembro de 1969, o Convento de Perdizes foi invadido pela polícia durante a madrugada e alguns dominicanos foram presos, acusados de envolvimento com ações terroristas, dentre eles, frei Tito. Torturado pela primeira vez, Tito foi levado ao Presídio Tiradentes, dividindo cela com outros presos políticos. Em fevereiro de 1970 foi surpreendido ao ser levado pelo capitão Maurício Lopes Lima, do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), para a sede da Operação Bandeirantes (OBAN), onde conheceria a “sucursal do inferno”, como bem explicitaram seus algozes. As sessões de tortura, comandadas pelo capitão Benone de Arruda Albernaz tiveram início naquele mesmo dia, as cutiladas foram só o início do terror que Frei Tito teria que suportar nos dias seguintes. O “pau de arara”, os choques elétricos, a “cadeira do dragão”, as queimaduras com cigarro, as pauladas e palmatória eram intercaladas com o terror psicológico empregado com destreza pelos torturadores, que conscientemente ameaçavam “quebrar Frei Tito por dentro”, causando-lhe uma ferida que jamais sararia.  

    Para escapar das torturas Tito tomou a decisão radical de suicidar-se. Após cortar artéria, na altura do cotovelo, Tito foi socorrido e levado ao pronto socorro do Hospital das Clínicas e, posteriormente, ao Hospital Militar. Ali, escreveu sobre as torturas sofridas (Arquivo 07 – carta testemunho) , carta que foi encaminhada a diversas instituições que atuavam na defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior, tornando-se a primeira denúncia pública sobre a situação dos presos políticos do país. (incluir foto da revista look?).  

    Mal se recuperou, frei Tito voltou a prisão onde permaneceu até janeiro de 1971, quando foi trocado pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher. Os sequestros ou as capturas de diplomatas foi uma estratégia inaugurada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em setembro de 1969 com o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Os revolucionários libertavam os diplomatas mediante sua troca por presos políticos, a veiculação de cartas protesto nos meios de comunicação, dentre outras demandas. Os depoimentos de quem conviveu com Frei Tito durante a prisão revelam a sua contrariedade na ideia de ser banido do país, ainda que a liberdade decorresse de tal medida.  

    (Arquivo 08 – dossiê da troca dos 70 presos políticos) 

    Ao ver seu nome publicado na lista e acolhida com entusiasmo pelos colegas de prisão, Tito via-se pressionado a aceitar o banimento em nome de uma luta coletiva e assim foi. Em janeiro, partiu junto a outros 69 presos políticos para a capital chilena. Não se demorou muito por lá, partindo para Roma e, em seguida, para Paris, onde se estabilizou por alguns meses.  

    Sua inquietação pelo banimento aparece em várias de suas cartas e nos depoimentos daqueles que conviveram com ele no exílio. O desenraizamento era parte do adoecimento emocional que estava sofrendo. A medida em que as alucinações com os torturadores se tornavam mais presentes, Frei Tito reiterava o desejo de voltar à terra natal ao lado dos seus, de modo que o banimento parece ter sido mais um capítulo da longa tortura ao qual a ditadura o submeteu.  

    A saída de Paris e mudança para o convento de Sainte-Marie de la Tourett foi indicada pelos superiores do convento, com esperanças de que a vida no campo o ajudasse a encontrar paz e reestabelecer a saúde mental. Entretanto, o torturador o perseguia em qualquer lugar, pois havia se introjetado em sua mente. Por volta de 10 de agosto de 1974 frei Tito pôs fim a tortura, enforcando-se em um álamo, numa região periférica de L’Arbresle. Ao revirar seus pertences, poucos dias após a morte, os freis encontraram um bilhete com alguns escritos, um deles dizia: “é melhor morrer que perder a vida”.  

    1. Tito Vive! Os vários caminhos da memória. 

    Um homem se fez intermediário entre nós e o infinito.  

    Primícia de nossa tênue liberdade (…) 

    Flagelado, seu corpo é semente.  

    Gilmar de Carvalho 

    Seu corpo é semente. Assim escreveu o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho em “Incelência para um frei insurreto”, poema escrito como uma homenagem póstuma, quando o corpo de Frei Tito finalmente retornava ao Brasil.  

    Semente… Prenhe de vida. É preciso que o fruto maduro caia e que se dê como oferta para que a vida ressurja. Uma metáfora que tão bem se aplica a vida de Frei Tito. Uma vida que não se encerra com a morte. 

    A redemocratização do país se deu a passos lentos. Em 1979 o movimento pela anistia ganhava força e aglutinava diversos movimentos e setores da sociedade. Frustrando a expectativa daqueles que durante anos fizeram frente aos desmandos da ditadura, a lei nº 6.683 sancionada em28 de agosto de 1979 anistiou também os agentes públicos, deixando impune torturadores e assassinos, uma impunidade que abre precedente para novos golpes e para que se perpetue a violência de Estado.  

    A cartunista Henfil, em sua crônica intitulada A mãe, escrita em novembro de 1980, reitera que todos voltaram, menos um: “está faltando ele, Frei Tito de Alencar Lima. Exilado num cemitério da França. Seu corpo clama por anistia. Que sua memória seja plantada na terra das palmeiras onde canta o sabiá.” (Carta a Mãe). 

    Em 12 de agosto de 1981 a família de Tito escreveu uma carta à Ordem dos Dominicanos reivindicando a anistia do corpo de Tito: “Queremos a anistia do nosso irmão mesmo morto e ressuscitado”. Um desejo que se concretizou em março de 1983, quase uma década após a sua morte e ainda durante a ditadura.  

    Arquivo 09- ENTREVISTA RICARDO GUILHERME 

    No Brasil, o corpo do frei foi acolhido primeiro em São Paulo, onde cerca de 4.000 pessoas se reuniram em uma celebração eucarística que também homenageava Alexandre Vannucchi, outro estudante assassinado pela ditadura. Foi somente na madrugada do dia 27 de março que Frei Tito regressou à cidade natal, sendo recebido por uma multidão emocionada em uma celebração na cripta da catedral de Fortaleza (Arquivo 10 e 11 – JORNAIS E SANTINHO DE LUTO). De lá, o cortejo fúnebre seguiu até o cemitério São João Batista, onde seu corpo repousa até hoje. Sem que houvesse uma grande mobilização, afinal ainda vivíamos uma ditadura, os ritos fúnebres reuniram uma multidão emocionada, que choravam a morte de Tito, mas também a opressão a uma geração. Entre choro, cantos, poemas, orações e discursos, o cortejo fúnebre seguiu até o cemitério São João Batista, pela contramão, um gesto que, embora espontâneo, foi internalizado por muitos como uma última transgressão de Frei Tito de Alencar.  

    Poderia ser esse o fim da história, mas não foi! Como semente, ao ser enterrado, Tito brota em sopros de vida, sopros de resistência, de lutas, de esperança que insiste em germinar em solos tantas vezes áridos, numa dureza que se perpetua ano após anos… 

    Frei Tito manteve-se vivo, através da memória, e a memória, como bem nos lembrou Régis Lopes e Martine Kunz (2002), puxa de volta ao passado, mas também nos lança ao futuro. Um futuro que é construído! 

    De lá pra cá quantos muitos grupos, instituições e movimentos se organizaram em torno da memória de Tito, é o caso do Movimento pró-memória, do Espeço Cultural Frei Tito de Alencar – ESCUTA, do escritório de advocacia popular frei Tito de Alencar, da ADITAL, do Memorial Frei Tito de Alencar, no Museu do Ceará, de espetáculos, filmes e livros escritos sobre o tema. Daqueles que lutaram pelo tombamento da casa em que Tito nasceu, do MP do Ceará ao trazer para o Espaço Cultural da Procuradoria-Geral de Justiça a exposição comemorativa aos seus 80 anos. Isso fazendo um levantamento apressado, que certamente deve ter negligenciado outras iniciativas, afinal são inúmeros os indícios de que Frei Tito Vive! Arquivo 12 – Poema Os ausentes de Roberto Pontes