Frei Tito de Alencar: coragem, fé e resistência

Cearense de alma inquieta, Frei Tito viveu intensamente seu tempo. Enfrentou a ditadura com coragem, pagou um preço alto ao lutar por justiça e se tornou símbolo de uma Igreja renovada e de um país que buscava liberdade. O legado, marcado pela defesa dos direitos humanos e da democracia, mantém viva a memória de tempos sombrios e nos convida a olhar para o futuro com esperança e responsabilidade. 

A história de Tito se encontra com a missão do Ministério Público, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que tornou o MP uma instituição permanente e essencial à Justiça, responsável por defender a ordem jurídica e o regime democrático, os direitos fundamentais e os interesses sociais indisponíveis. 

Para reforçar esse compromisso, o Ministério Público do Ceará inaugurou a exposição “80 anos de Frei Tito: Memória e Justiça”, na sede da Procuradoria Geral de Justiça, em Fortaleza. Realizada em parceria com a Secretaria da Cultura do Estado, por meio do Museu do Ceará, e com a Secretaria de Direitos Humanos do Estado, a mostra apresenta documentos, objetos pessoais e relatos que revelam a trajetória de Frei Tito desde a juventude até o exílio na França. A exposição convida o público a refletir sobre o papel da memória como instrumento de justiça e transformação social, e destaca a importância de manter viva a voz de quem lutou pela liberdade e pela dignidade humana. 

Infância: raízes de um menino sonhador

Era uma casa simples, de portas abertas para a rua Rodrigues Júnior, no coração de Fortaleza. Foi ali, no número 364, que viveu Tito de Alencar Lima — o caçula de uma família numerosa e cheia de histórias – e de onde se tirou o retrato no dia em que o Frei completou 12 anos. A imagem mostra um menino de olhar tranquilo, cercado pelas irmãs Nildes, Nelza, Nilma e Nícia, com dona Laura, a mãe, ocupando o centro da cena. A fotografia, guardada com carinho pela família, ganhou ainda mais valor após o falecimento do caçula anos mais tarde.    

Nildes, com cerca de 12 anos na época, assumiu com naturalidade o papel de segunda mãe. Foi ela quem guiou o irmão com ternura e firmeza, e teve um importante papel na formação intelectual, religiosa e política de Tito. Nailde, carinhosamente chamada de Daíde, foi quem o alfabetizou e abriu as portas do conhecimento para o menino que, mais tarde, se tornaria símbolo de resistência. 

Nascido em uma família católica, Tito cresceu frequentando a igreja e foi inscrito por dona Laura na Congregação Mariana, na Igreja do Cristo Rei, em Fortaleza. Ali, entre orações e debates, começou a se formar o espírito inquieto e comprometido que o acompanharia por toda a vida.

Tito foi o último dos onze filhos de Laura Alencar Lima e Ildefonso Rodrigues de Lima, que já estavam com idade avançada quando ele nasceu, e cresceu entre o afeto, a simplicidade e os cuidados das irmãs mais velhas. O nome, forte e marcante como seria o Frei no futuro, foi herança de um tio: Tito Sobreira de Alencar.

Juventude e atuação no Ceará 

Aos 12 anos, Tito de Alencar Lima foi aprovado no Liceu do Ceará, um dos colégios mais importantes e efervescentes da vida intelectual, cultural e política do Estado, onde permaneceu de 1958 a 1963. Vindo do Colégio Tibúrcio Cavalcante, mergulhou num ambiente onde os jovens debatiam e se mobilizavam, período em que o movimento estudantil ganhava força, com pautas como a meia-entrada e outras lutas que ecoavam por todo o Ceará. 

Foi nesse cenário que Tito conheceu a Juventude Estudantil Católica (JEC), uma organização que unia fé e compromisso social. Apesar de já ter sido apresentado à doutrina social da Igreja, foi na JEC que ele aprofundou as leituras, os debates e iniciou um trabalho de articulação das bases.

Esse período da vida de Tito ainda é pouco documentado. Há lacunas nas pesquisas e poucas fontes disponíveis, mas entre recortes de jornais, documentos guardados por militantes e livros que circulavam entre os jovens da JEC, é possível vislumbrar um Tito adolescente, inquieto e comprometido. Rabiscos em margens de páginas, anotações em revistas e relatos preservados pela memória oral revelam um jovem afetuoso, brincalhão, estudioso e profundamente envolvido com as questões de seu tempo.  

Conversas com amigos de Tito revelaram cenas do cotidiano: jogos de futebol, piqueniques nas cidades cearenses de Maranguape e Baturité; encontros na praia de Iracema, em Fortaleza, para tocar violão e ouvir os discos de Maysa; almoços na casa dos colegas. Momentos de lazer que se entrelaçavam com uma intensa rotina de estudos e discussões políticas. Os livros circulavam entre os jovens como tesouros, pois eram inacessíveis a boa parte da população. 

Fortaleza, nesse tempo, desenhava uma cartografia de afetos e resistência. A Igreja do Rosário dos Pretos, no centro da cidade, era ponto de encontro quase diário dos jovens da JEC. Após as missas, eles se espalhavam pela Praça dos Leões, onde travavam debates sobre política nacional e internacional, literatura, avanços da ciência e viviam os flertes e confidências da juventude. Jaime Libério, amigo de Tito, chama esses encontros de “quebra-casca”, pois, embora parecessem espontâneos, faziam parte da estratégia de mobilização da JEC. 

Outros espaços também marcaram essa fase, como a Praça do Ferreira e a Praça da Bandeira também no centro de Fortaleza, locais em que ocorriam as grandes manifestações da época. Além desses, a escola de música Henrique Jorge ao lado do Parque das Crianças, a chácara da família Pontes no Monte Castelo e, mais tarde, a casa da família Arruda na Avenida Tristão Gonçalves faziam parte do roteiro para encontros. A praia de Iracema, com seu charme boêmio, era palco de encontros furtivos e conversas sobre a vida e descobertas musicais. O local era considerado o território da “juventude transviada” ou “dos rabos de burro”, como relembra Jaime Libério. 

Os piqueniques eram espaços privilegiados de sociabilidade dessa juventude, e mantinham uma dinâmica em que se revezavam os momentos de espiritualidade, estudos e lazer. Uma dinâmica que formou não apenas Tito, mas uma geração de cearenses que, ao longo da vida, mantiveram o compromisso com a transformação social. 

Carta denúncia. Frei Tito, março de 1970

Quando o golpe militar de 1964 ocorreu, Tito de Alencar já havia deixado Fortaleza. Vivendo em Recife, participava da coordenação colegiada regional da Juventude Estudantil Católica (JEC), enquanto terminava o científico (equivalente ao atual ensino médio). Mesmo jovem, já mostrava um forte senso de organização e compromisso com as causas sociais.  

Em 1966, comunicou à família o desejo de seguir a vida religiosa, ingressou na Ordem dos Dominicanos e partiu para o convento da Serra, em Belo Horizonte. No dia 10 de fevereiro de 1967, realizou sua profissão de fé na ordem dos pregadores, tornando-se Frei Tito. 

Dando continuidade à vida religiosa, Frei Tito mudou-se para o convento de Santo Alberto Magno, no bairro Perdizes, em São Paulo. Lá, formou laços profundos com outros dominicanos (Magno José Vilela, Ivo Lesbaupin, Oswaldo Rezende Júnior, Luiz Ratton Mascarenhas e Carlos Alberto Libânio Christo) que, como ele, seriam vozes importantes na luta pela democracia e pelos direitos humanos.  

Em 1969, Frei Tito ingressou no curso de Ciências Sociais na USP, fortalecendo ainda mais a atuação no movimento estudantil. Foi nesse mesmo ano que participou da organização do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado em um sítio em Ibiúna (SP). A reunião foi interrompida por uma operação policial, e Tito foi um dos 719 estudantes detidos. 

A partir daí, passou a ser vigiado de perto pelo regime. Em novembro do mesmo ano, o Convento de Perdizes foi invadido durante a madrugada, e Frei Tito, junto a outros dominicanos, foi preso e acusado de envolvimento com ações terroristas. Levado ao Presídio Tiradentes, dividiu cela com outros presos políticos e foi torturado pela primeira vez. 

Em fevereiro de 1970, foi transferido pelo capitão Maurício Lopes Lima para a sede da Operação Bandeirantes (OBAN), que ficou conhecida como a “sucursal do inferno”, em razão das sessões brutais de tortura que lá ocorriam. Frei Tito sofreu com “pau de arara”, choques elétricos, queimaduras e várias outras agressões físicas e psicológicas, tudo para “quebrá-lo por dentro”. Os torturadores sabiam que a dor física passava, mas a ferida emocional jamais sararia.

Para escapar do sofrimento, Tito tentou tirar a própria vida. Após cortar uma artéria no braço, foi socorrido e levado ao Hospital das Clínicas, depois ao Hospital Militar.

Lá, escreveu uma carta-denúncia sobre as violências sofridas, que chegou a ser enviada a várias instituições de direitos humanos no Brasil e no exterior. O documento tornou-se a primeira denúncia pública sobre a situação dos presos políticos no país.

Depoimento de Frei Tito, gravado no exílio no Chile em 1971, no qual ele relata as torturas sofridas durante a ditadura.

Carta-denúncia escrita por Frei Tito de Alencar em março de 1970. Acervo da Comissão Nacional da Verdade.

Mesmo sem estar totalmente recuperado, Frei Tito voltou à prisão, onde permaneceu até janeiro de 1971, quando foi libertado em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), numa estratégia para denunciar a repressão e garantir a libertação de presos políticos. Frei Tito resistiu à ideia de ser banido do Brasil, mas acabou cedendo em nome da luta coletiva. 

Partiu com outros 69 companheiros para o Chile, seguiu para Roma e, por fim, Paris. No exílio, a dor do desenraizamento se somou às marcas da tortura. As alucinações com seus algozes se tornaram frequentes, e o desejo de voltar à terra natal crescia. O banimento, para ele, era mais um capítulo da violência que o regime impôs. 

Na tentativa de encontrar paz e restabelecer a saúde mental, foi encaminhado ao convento de Sainte-Marie de la Tourette, no interior da França. Porém, o tormento o acompanhava, pois o capitão que o torturou havia se instalado em sua mente, e não havia refúgio possível. Por volta de 10 de agosto de 1974, Frei Tito pôs fim à sua dor: enforcou-se em um álamo, nos arredores de L’Arbresle. Entre seus pertences, os freis encontraram um bilhete com palavras que ainda ecoam: “é melhor morrer que perder a vida.”

Gilmar de Carvalho

   

A redemocratização do país se deu a passos lentos. Em 1979 o movimento pela anistia ganhava força e reunia diversos movimentos da sociedade, porém a expectativa dos que lutaram contra a ditadura foi frustrada com a aprovação da Lei da Anistia (6.683/79), que deixou impunes agentes públicos torturadores e assassinos.

O cartunista Henfil escreveu: “Está faltando ele, Frei Tito de Alencar Lima. Exilado num cemitério da França. Seu corpo clama por anistia. Que sua memória seja plantada na terra das palmeiras onde canta o sabiá” (Cartas da Mãe – Nov/1980). Em 12 de agosto de 1981, a família pediu à Ordem dos Dominicanos a anistia do corpo de Tito: “Queremos a anistia do nosso irmão mesmo morto e ressuscitado.” O pedido foi atendido em março de 1983, quase dez anos após a morte dele.  

A memória de Frei Tito contada por quem esteve ao seu lado.

Cada vídeo tem uma história — Assista aos depoimentos.

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O corpo do frei foi acolhido primeiro em São Paulo, e cerca de 4.000 pessoas se reuniram em uma celebração eucarística que também homenageou Alexandre Vannucchi, outro estudante assassinado pela ditadura. Somente na madrugada do dia 27 de março Frei Tito regressou à cidade natal, sendo recebido por uma multidão emocionada em uma celebração na catedral de Fortaleza.

Entre choro, cantos, poemas, orações e discursos, o cortejo fúnebre seguiu até o cemitério São João Batista, pela contramão, um gesto que, embora espontâneo, foi internalizado por muitos como uma última transgressão de Frei Tito de Alencar.

Seu corpo é semente. Assim escreveu o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho em “Incelência para um frei insurreto”, poema escrito em homenagem póstuma, quando o corpo de Frei Tito finalmente retornou ao Brasil. 

Uma homenagem que não fala de fim, mas de começo, porque Tito, mesmo morto, germinou. Como toda semente, ele caiu na terra e ali, no solo da memória, começou a brotar. Sua história não se encerra com a morte. Ela se espalha, cresce, floresce em cada gesto de resistência, em cada voz que se recusa a calar. 

Desde então, muitos se organizaram para manter viva sua história:  

  • Movimento pró-mudanças Frei Tito de Alencar Lima: criado em agosto de 1985, aglutinou pessoas oriundas de diversos partidos e movimentos sociais em torno do avanço democrático, da defesa de uma candidatura capaz de fazer frente às oligarquias políticas remanescentes do período ditatorial e lutar por uma Assembleia Nacional Constituinte.
  • Espaço Cultural Frei Tito de Alencar (ESCUTA): fundado na década de 1980 por jovens, religiosos e militantes no bairro Pici, Fortaleza, é uma organização de base que promove educação não formal, cultura popular, formação de liderança e arte como instrumentos de emancipação social. Saiba mais em: Instagram 
  • Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA): órgão permanente de promoção à cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece). Saiba mais em: Site 
  • Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (ADITAL): criada em Fortaleza em 2000, atuou como um veículo de comunicação alternativa voltado para dar visibilidade a temas ligados aos direitos humanos, justiça social e experiências populares na América Latina. Seu objetivo era fortalecer a integração latino-americana e democratizar a informação, divulgando pautas frequentemente marginalizadas pela grande mídia, até o encerramento de suas atividades em 2016. Saiba mais em: Site 
  • Memorial Frei Tito (Museu do Ceará): inaugurado em 2002 no Museu do Ceará, em Fortaleza, o espaço buscava, através da trajetória de vida do Frei Tito de Alencar, provocar reflexões sobre a repressão política e o futuro da democracia.  

Além de espetáculos, filmes, livros, homenagens e dos que lutaram pelo tombamento da casa em que Tito nasceu, em Fortaleza. 

Diante da grandeza de Frei Tito, o Ministério Público do Estado do Ceará celebra seus 80 anos com uma exposição que reafirma o compromisso com a memória e os direitos humanos. 

Explore a linha do tempo de uma trajetória que ainda ecoa.

Reviva a história de um tempo que não deve ser esquecido.

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