A trajetória da primeira promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará, Lucrécia Pinho, é fundamentada no pioneirismo e na inovação. Antes de ser nomeada para o órgão ministerial, em 1934, Lucrécia havia sido também a única mulher na turma de 1929 da Faculdade de Direito do Ceará e a primeira mulher inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Ceará (OAB-CE), em 1933. Apesar da década ainda desafiadora para as mulheres no direito brasileiro, esse era só o início de um percurso de avanços que abriria caminhos para futuras gerações de mulheres na área jurídica. 

Foto de Lucrécia Pinho 

Para entender tamanhas conquistas, é necessário contextualizar o momento em que Lucrécia Pinho iniciou a vida profissional. O ano em que foi nomeada no MP do Ceará marcou também a incorporação do voto feminino à Constituição Federal de 1934, embora de forma facultativa. A Constituição daquele ano também foi a primeira a considerar a igualdade de direitos entre os sexos e os direitos sociais. Naquela Carta Magna, as diferenças salariais por questões de gênero foram proibidas pela primeira vez. Era o momento também da efetivação dos direitos trabalhistas, inclusive os específicos para as mulheres, que passaram a ter direito à assistência médica e sanitária antes e depois do parto, por meio da Previdência Social. 

Para Aline Fátima Pinho, sobrinha-neta de Lucrécia, a tia traçou um caminho antes jamais percorrido. “Há 90 anos, que foi quando ela se formou, já provou que o lugar da mulher é onde ela quiser estar e conseguir se posicionar por mérito. Ela deixou um legado muito grande. Não se voltou atrás. Era impossível dizer ‘foi só você que passou, nenhuma mulher mais vai passar’. Não. Foi algo sem volta. Que grande feito isso. Talvez despretensiosamente ela tenha aberto essa porta para nunca mais fechar”, reflete. 

CASA CHEIA

A história de Lucrécia Pinho é testemunho de desafios e conquistas bem antes da escolha da profissão. Filha de Edgar Pinho e Maria José Pinho, nasceu em Sobral em 28 de abril de 1912 e fez a educação básica em Fortaleza. Do total de oito filhos do casal, sendo seis mulheres e dois homens, foi a primeira da família a entrar para o ramo do Direito. A primeira escolha, a Odontologia, foi barrada pelo pai devido à dificuldade vislumbrada para montar um consultório. Filha obediente e determinada, seguiu o conselho do pai para ingressar no serviço público e logo ajudar nas despesas domésticas.  

Como conta a sobrinha-neta Aline Pinho, a educação que a tia proporcionou foi além da formal. Os gostos por música popular brasileira, bossa nova, clássicos do samba, valsa, teatro e, principalmente, pela literatura eram repassados de forma natural para quem ajudasse a encher a casa no Bairro de Fátima. A residência, aliás, estava sempre de portas abertas, principalmente em duas datas do ano, em 13 de maio e 13 de outubro, quando aconteciam as procissões de Nossa Senhora de Fátima. Além das datas religiosas, 13 de maio era também o aniversário dos dois irmãos. “Ela enfeitava a casa com balões azuis e brancos, ficava tudo muito bonito, enfeitado. As pessoas chegavam, entravam, ficavam, saíam, todas muito bem recebidas”, relembra a sobrinha-neta Aline Pinho. Lucrécia Pinho faleceu em 26 de abril de 2000, aos 87 anos, em Fortaleza. 

DO LICEU PARA A FACULDADE

Dos bancos do Liceu do Ceará para a Faculdade de Direito do Ceará, Lucrécia Pinho também teve uma trajetória marcante nos estudos. Iniciou a educação básica em Sobral, mas foi em Fortaleza que vislumbrou os primeiros passos profissionais. No Liceu, fez o tradicional ginásio entre os anos de 1924 e 1929. Concluída a educação básica, iniciou o curso de Direito sendo a única mulher da turma de 1929, aos 17 anos. A singularidade rendeu à universitária desafios, crescimento e determinação. 

 
Aluna de Beni Carvalho, colega de turma de Parsifal Barroso e Filgueiras Lima, Lucrécia desfez paradigmas devido à pouca presença feminina no espaço universitário, especialmente no ambiente jurídico. Registros relatam que, em uma aula de Direito Penal, o professor se recusou a falar do crime de estupro com a presença de uma mulher na sala de aula. Convidada a se retirar da sala, a universitária informou que ficaria e assistiria à aula. “Respondi que ele poderia dar a aula tranquilo. Assisti à aula como sempre fazia e saí de cabeça erguida”, mencionou em entrevista. 

Nos jornais cearenses, os feitos de Lucrécia Pinho eram notícia desde que a sobralense passou a se destacar no ambiente acadêmico. Comprometida, graduou-se em quatro anos, enquanto à época o usual era formar-se com cinco anos de faculdade. No material elaborado pela turma de 1929, um poema destacou a formanda com a alcunha que ganhara durante o curso – “flor de liz”. O soneto cita a bondade, o trato social, a dedicação e a seriedade que caracterizavam a estudante. A turma colou grau em 3 de dezembro de 1933. 

Faculdade de Direito do Ceará, onde Lucrécia Pinho fez a graduação

OAB 

O pioneirismo na faculdade fez de Lucrécia Pinho a primeira mulher inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Ceará (OAB-CE), em 1933, ano de fundação da instituição no estado. A sobralense assinou a carteira de número 140. A inovação marcou também a história da OAB no país. É de Lucrécia Pinho o segundo registro feminino em carteira funcional da Ordem. Antes da cearense, o primeiro registro oficial foi da advogada fluminense Myrthes Gomes de Campos.  

Lucrécia Pinho advogou por menos de um ano. Porém, apesar do curto período, sua atuação foi reconhecida pelo conhecimento jurídico e dedicação. Hoje seu nome intitula a Sala Multiuso na Escola Superior de Advocacia do Ceará (ESA-CE). A homenagem atende principalmente à contribuição da cearense para a advocacia feminina no país e no estado.  Somente 90 anos depois da primeira carteira funcional feminina e da fundação da instituição, a OAB Ceará passou a ser presidida pela primeira vez por uma mulher. Christiane Leitão foi eleita presidente no ano passado, para o triênio de 2025-2027.  

Para a sobrinha-neta de Lucrécia, Aline Fátima Pinho, a inscrição foi um ato de insubmissão em um ambiente predominantemente masculino. 

Primeira promotora de Justiça

Lucrécia Pinho foi a primeira promotora de Justiça do Ceará e a segunda a ingressar na carreira ministerial em todo o Brasil. Nomeada em 1º de junho de 1934 no Ministério Público do Estado do Ceará, foi titular nas comarcas de Icó, Cascavel, Aquiraz, Sobral e Fortaleza.  Após um ano em Icó, em 1935 assumiu a Promotoria de Justiça de Cascavel, onde passou 14 anos, até ser designada, em 26 de novembro de 1948, para a 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Fortaleza. 

Os anos seguintes foram divididos entre municípios próximos à capital:  reassumiu a comarca de Cascavel em janeiro de 1949 e, quatro meses depois, foi designada para Aquiraz. Dois anos depois, em 8 de agosto de 1951, foi promovida por antiguidade para a Promotoria da 2ª Vara da Comarca de Sobral. Em 1955, voltou para Fortaleza. Assumiu a Promotoria de Justiça da 3ª Vara Cível da capital em 1º de junho e foi posta à disposição da Procuradoria Geral do Estado em 4 de novembro de 1957. Em 9 de abril de 1959, passou a responder pela 1ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.  Aposentou-se em 1962.

Lucrécia Pinho dedicou a trajetória como membra do MP à defesa dos direitos dos cidadãos cearenses. Em todas as comarcas por onde passou ganhou admiração não só dos colegas, mas da população. Segundo a sobrinha-neta Aline Fátima Pinho, a tia-avó era conhecida como “madrinha”, dada a quantidade de afilhados que acumulou ao longo dos 35 anos de Ministério. Para não esquecer nomes e lugares, tinha um caderno com o registro dos apadrinhados.  

Mulheres no MP 

O legado de Lucrécia Pinho reflete, ao longo das décadas, o fortalecimento da presença feminina no Ministério Público brasileiro. Embora de forma geral os homens sejam maioria na instituição, a paridade entre gêneros é uma realidade cada vez mais próxima, especialmente nos estados nordestinos. Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o Nordeste é a região com maior quantidade de promotoras e procuradoras de Justiça (43,18%), seguido do Sudeste (41,30%) e Sul (40,04%). As regiões Centro-Oeste e Norte concentram, respectivamente, 38,69% e 38,11% de mulheres entre o total de membros. Dos 13.170 membros do Ministério Público no Brasil, 40,54% (5.339) são mulheres e 59,46% (7.831) são homens. 

Os dados são do Mapa da Equidade, Reflexão, Pesquisa e Realidade, que reúne levantamento feito em 2023 e divulgado no ano passado. A ideia é que o levantamento contribua para a tomada de decisões, para a elaboração de estratégias de combate à desigualdade de gênero e para a busca pela diversidade no MP brasileiro. Ainda segundo o Mapa da Equidade, em 27 das 30 instituições mapeadas os homens ainda representam mais de 50% do total de integrantes. Além disso, o percentual de mulheres membras só é maior do que o de membros no MP do Rio de Janeiro (mulheres somam 57,91%); no Ministério Público do Trabalho (52,12%) e no MP da Bahia (51,37%). 

De acordo com a Secretaria de Gestão de Pessoas (Segep) do MP do Ceará, em atividade há 411 membros nas Promotorias de Justiça, sendo 268 membros e 143 membras. Já nas Procuradorias de Justiça no Ceará, do total de 55 integrantes, a maioria são mulheres (29). Contudo, a diferença maior está entre técnicos e analistas ministeriais em atividade. Dos 1.138 servidores em atividade, as mulheres somam 666 e os homens, 472.