Sob uma casa de taipa na zona rural de Pentecoste, quatro irmãos idosos sobreviviam à própria sorte. Sem água encanada nem banheiro adequado e comendo apenas uma vez ao dia, eles corriam risco de vida. Graças ao trabalho do Ministério Público do Estado do Ceará, em parceria com a Rede de Proteção Social do município, dois dos irmãos foram transferidos, no último dia 4 de julho, para uma Instituição de Longa Permanência para Idosos em Maranguape. Tiveram a dignidade de volta, restaurando vidas marcadas pelo tempo e pelo abandono.
“Primeiro tentamos buscar a rede de apoio, localizar uma família extensa para esses idosos, mas quando vislumbramos que isso não era possível, partimos para a última possibilidade, que era o acolhimento”, ressalta a promotora de Justiça Lara Dourado, titular da Promotoria de Justiça de Pentecoste. Para o caso chegar ao Ministério Público, no entanto, alguém teria que descobri-lo (e denunciá-lo).
A cerca de 50 km da sede de Pentecoste, casas espaçadas expõem a vida na zona rural do município. Lá, a comunidade de Arisco Mororó, no Distrito de Porfírio Sampaio, resiste ao tempo. Às margens da estrada de terra, única ligação entre a localidade e o resto do município, avista- se a casa com as paredes de taipa, a velha cisterna, as telhas cansadas. Tudo parece descaso, omissão, negligência. Ao se deparar com a situação, uma agente comunitária de saúde que trabalhava naquela região resolveu bater à porta. Ao entrar, percebeu que o interior guardava muito mais desamparo do que o lado de fora. Era setembro de 2023.
Comunicado pela agente de saúde da situação, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Pentecoste resolveu agir e, já no mês seguinte, iniciou a série de peregrinações à residência dos idosos.
“A estrutura da casa é precária. Alimentação quase não tinha. Uma situação de vulnerabilidade evidente”
– Rejane Aguiar, agente administrativa do CREAS Pentecoste que esteve presente na primeira visita
Entre outubro de 2023 e setembro de 2024, a equipe do equipamento tentou, por diversas vezes, contato com aquela que seria a responsável pelos quatro idosos, mas ela nunca compareceu à sede do CREAS para prestar informações. A suspeita era de que a mulher, filha adotiva de uma das idosas, estaria desviando para proveito próprio os recursos que os quatro recebiam de aposentadoria ou Benefício de Prestação Continuada (BPC). Todos os idosos, ainda, teriam empréstimos consignados em seus nomes, o que estaria comprometendo o valor final que recebiam. Diante da situação, denunciada até mesmo por outros membros da família das vítimas, não havia dúvidas: seria necessário acionar o Ministério Público.
Em 11 de setembro de 2024, a Promotoria de Justiça de Pentecoste instaurou um procedimento para acompanhar o caso. “Passamos a trabalhar conjuntamente com o CREAS e com o CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] para tentar dar mais qualidade de vida a eles”, reforça a promotora de Justiça Lara Dourado, que chegou a se reunir, no dia 3 de dezembro do ano passado, com a suspeita de estar desviando os recursos. À época, ela prometeu se mudar para morar definitivamente com os idosos até o fim daquele mês.
Não foi o que ocorreu. Em nova visita do CREAS, em 21 de fevereiro de 2025, a própria mãe da suspeita confirmou que ela só vinha ao local para buscar os cartões e ir receber os benefícios. Permaneciam à própria sorte, os irmãos A.C.S, de 73 anos; F.C.S, de 64 anos; R.M.C, de 82 anos; e R.C.S., de 71 anos. Com os quatro, ainda morava R.C.S., de 47 anos, que, por ter deficiência intelectual, também recebia BPC e, assim como os outros, tinha um empréstimo consignado em seu nome.
INCLUIR GALERIA DE FOTOS AQUI (FOTOS 3, 4, 5, 6 e 7): https://tinyurl.com/5n838285 Legenda: Idosos viviam em situação de vulnerabilidade na zona rural de Pentecoste.
Buscando aprofundar ainda mais sua atuação no caso, a promotora de Justiça Lara Dourado solicitou apoio do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Cidadania (Caocidadania), órgão do MP do Ceará que presta auxílio aos membros que atuam na defesa da Pessoa Idosa, da Pessoa com Deficiência, entre outras áreas.
INCLUIR ÁUDIO DA PROMOTORA DE JUSTIÇA LARA DOURADO AQUI
Extrair mídia do arquivo em vídeo da entrevista (VÍDEO 1 – disponível na Pasta ENTREVISTA DRA. LARA DOURADO)
DEIXA INICIAL (05min05s): “O Caocidadania tem serviços de assistência social …
DEIXA FINAL (05min30s): … então ela já avalia a situação do jeito que ela encontrou”
CRÉDITO DO ARQUIVO DE MÍDIA: Lara Dourado, promotora de Justiça de Pentecoste
Já com o apoio da assistente social do Caocidadania, Rejane Sales, a equipe do CREAS fez outras duas visitas aos idosos nos dias 27 de maio e 23 de junho deste ano. Na primeira, Rejane se surpreendeu com a grande quantidade de abelhas no interior da casa. “Mesmo com o calor, uma das idosas estava toda coberta e, quando perguntamos o motivo, ela disse que era para não ser picada”, destaca. Dois dos outros idosos também aparentavam estar bem debilitados. R.M.C, o mais velho dos quatro, disse estar com um mal-estar porque comia pouco ao longo do dia, enquanto R.C.S. já não se comunicava verbalmente, tendo passado todo o tempo em que Rejane e a equipe do CREAS estiveram no local deitada em uma rede.
“Eu trabalhava na roça. Fazia muita coisa. Agora que estou velho não consigo mais.”
– R.M.C, o mais velho dos quatro irmãos
INCLUIR AQUI VÍDEO 1 EDITADO (VÍDEOS + ENTREVISTAS DRA. LARA DOURADO E REJANE SALES). ROTEIRO COM GABRIEL E MARCO
O relatório produzido e entregue por Rejane à Promotoria de Justiça de Pentecoste só confirmou o que já era esperado: os idosos estavam em situação de aparente abandono na casa em que residiam. “Todas as questões que levantamos, objetivamente, demonstravam que aquelas pessoas não estavam obtendo os cuidados que um idoso necessita”, pontua a assistente social.
Com todas as outras possibilidades esgotadas, coube ao Ministério Público pedir, no dia 24 de junho, a instauração de inquérito policial para investigar o suposto crime de exploração patrimonial e retenção indevida de documentos e cartões bancários por parte da filha da idosa F.C.S. O MP ainda entrou com uma Ação Civil Pública para garantir que os três idosos que estavam debilitados e sem a capacidade civil plena de tomar decisões pudessem ser transferidos para uma Instituição de Longa Permanência (ILPI). Era o começo do fim.
Para garantir a transferência, primeiro era preciso conseguir um novo lar. O Ceará, no entanto, conta apenas com uma ILPI pública: o Lar Olavo Bilac, em Fortaleza, que não tem vagas disponíveis. A alternativa seria recorrer a uma entidade filantrópica. Foi quando o Instituto dos Pobres de Maranguape surgiu. “Esse trabalho para aquisição de vagas tem sido árduo, mas felizmente conseguimos contar com o apoio das irmãs”, lembra Rejane Sales.
Administrado pelas Irmãs Missionárias Capuchinhas, o instituto tem 82 anos de história e acolhe atualmente cerca de 75 idosos. O local se mantém com recursos dos que lá residem e doações, além da renda obtida em eventos beneficentes. O objetivo do lar, segundo a coordenadora, irmã Charla Cuesta, é dar dignidade ao idoso acolhido.
INCLUIR ÁUDIO DA IRMÃ CHARLA CUESTA AQUI
Extrair trecho do áudio disponível na PASTA ENTREVISTAS > CHARLA CUESTA
DEIXA INICIAL (2min54s): “Nós queremos ofertar para eles e a gente busca o máximo dar uma qualidade de vida…”
DEIXA FINAL (3min36s): “… mas a saúde integral dele, que engloba toda a área.”
INCLUIR AQUI A OUTRA GALERIA DE FOTOS (FOTOS 11, 9, 8 e 10 – nessa ordem): https://tinyurl.com/5n838285)
Legenda: Instituto dos Pobres busca promover um ambiente acolhedor para os acolhidos.
Para identificar as necessidades dos acolhidos, os idosos A.C.S, R.M.C e R.C.S tiveram que fazer exames nos dias 26 e 28 de junho. Com os resultados à disposição da equipe do instituto, faltava apenas a autorização judicial para que os três irmãos fossem transferidos. E ela veio em 2 de julho de 2025.
Dois dias após a decisão judicial, a equipe do CREAS, acompanhada da Polícia Militar, regressou à comunidade de Arisco Mororó para resgatar as vidas. A.C.S e R.M.C aceitaram a ajuda para viver dias melhores, mas R.C.S pediu para ficar, tendo seu desejo atendido. “Como ela manifestou expressamente essa vontade, teve essa capacidade de escolher por si, não fizemos o abrigamento”, frisa a promotora de Justiça Lara Dourado.
INCLUIR AQUI O VÍDEO 2 EDITADO (VÍDEOS DA TRANSFERÊNCIA + ENTREVISTAS DRA. LARA DOURADO E REJANE SALES). ROTEIRO COM GABRIEL E MARCO
Agora em segurança e com a dignidade restaurada, os irmãos resgatados passaram a se alimentar seis vezes ao dia e tomar as medicações nos horários corretos. Os dois estão sendo acompanhados diariamente pela equipe do instituto, que conta com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, entre outros profissionais. “É nítido que um está subnutrido e a outra está em fase de desnutrição, mas iremos fazer o acompanhamento adequado a partir de agora”, destacou a enfermeira da ILPI, Ingrid Costa, no dia da transferência.
Enquanto os dois redescobrem sensações antes esquecidas, o caso segue sendo acompanhado pelo MP do Ceará. “Ao final da investigação que está sendo conduzida pela Delegacia de Pentecoste, os autos vão voltar ao Ministério Público para o oferecimento ou não de denúncia”, pontua a promotora de Justiça Lara Dourado, que, juntamente com o CREAS, segue monitorando a situação das duas idosas e da pessoa com deficiência que permaneceram na casa.
Quase dois anos após a primeira visita à casa de taipa, a vida ganhou novos contornos de esperança para os irmãos resgatados. Em cada palavra carinhosa que escutam, em cada sorriso que recebem e em cada abraço que os envolvem, os dois têm a certeza de que ainda há tempo para muita coisa.
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Reportagem e fotografia: Émerson Rodrigues
Vídeos: Émerson Rodrigues e Gabriel Redz
Edição de texto: Camila Rocha
Edição de imagens: Marco da Escóssia e Gabriel Redz
Diagramação: Emanoel Oliveira
Design: Pedro Henrique D’Leon
Essa reportagem é uma produção da Secretaria de Comunicação do Ministério Público do Estado do Ceará.