De volta para casa 

Família cearense em situação de vulnerabilidade é repatriada das Filipinas em uma atuação conjunta do MP do Ceará e órgãos estaduais e federais

F. com a esposa e o filho mais novo na casa de familiares, em Fortaleza.

A vida de F. e da família virou de cabeça para baixo no dia 21 de julho de 2024. Morando nas Filipinas há pouco mais de um ano, ele trabalhava em uma plataforma de jogos on-line, que se tornou ilegal pelo governo do país do Sudeste Asiático após ser associada a atividades criminosas. Desempregado, com a sogra idosa necessitando de medicamentos e com risco de ser preso por ter trabalhado em um serviço irregular, F. recebeu ajuda do Ministério Público do Estado do Ceará e de outras instituições para regressar ao Brasil. Hoje, ele, a esposa, os dois filhos e a sogra estão em segurança na residência de familiares em Fortaleza, um alívio depois de meses de tensão.   

O promotor de Justiça Germano Rodrigues, titular da 6ª Promotoria de Justiça da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza, soube da situação de F. e de sua família durante a inauguração do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante do Aeroporto de Fortaleza, em 16 de outubro de 2024. Durante o evento, ele foi abordado por um pastor da República de Guiné-Bissau que conhecia F. e contou o que estava ocorrendo com ele e a família nas Filipinas. “Entendi que o Ministério Público do Ceará poderia atuar de alguma forma nessa questão, tendo em vista a presença de uma idosa em situação de extrema vulnerabilidade”, destaca o membro do MP. Para entender tudo o que aconteceu, no entanto, é preciso retornar a 2023, quando F. mudou-se para o país.

O sonho que virou pesadelo 

F. é fascinado pela cultura asiática há pelo menos 15 anos. “O que você me perguntar sobre as Filipinas, eu vou saber responder”, conta. Foi pesquisando pelo país no Youtube que ele conheceu um canal que mostrava o dia a dia de brasileiros que moravam em Manila, capital filipina. Curioso para saber mais detalhes, F. começou a trocar mensagens com a dona do canal, que também atuava recrutando brasileiros para trabalhar no exterior. Naturalmente, ela lhe fez o convite.

Após conversar com a esposa, F. agarrou a oportunidade, mas com uma condição: ele iria na frente e, após se estabilizar, levaria a família. Foi o que aconteceu. Em 20 de junho de 2023, ele desembarcou no Aeroporto Internacional Ninoy Aquino (MNL), em Parañaque, onde foi recebido pela recrutadora. Dois dias depois, já estava na empresa, aprendendo a como utilizar os sistemas. Com uma jornada de 12h por dia e uma folga na semana, F. trabalhava no serviço de atendimento ao cliente e recebia 100 mil pesos filipinos por mês (aproximadamente R$ 10 mil). “O que eu não sabia era que o custo de vida lá é muito alto”, confessa. 

Transcrição:”A média de atendimento diário, dependendo da plataforma, ficava em 500 até 700 clientes por dia. E detalhe: por que que eu sei, por que que eu lembro o número que nós atendíamos? Porque eram todos protocolados. Eu tinha que atender o cliente, tinha que protocolar cada atendimento no excel, tinha que especificar qual era o problema do cliente, tinha que anotar o número do IP do cliente, então era bem cansativo. Muitas vezes a gente até ‘esquecia’ de anotar alguns pra poder conseguir atender o próximo cliente.” 

Em 1º de fevereiro de 2024, a esposa, os filhos e a sogra de F. chegam às Filipinas, o que fez os gastos subirem ainda mais. “Minhas contas fixas mensais ficavam em torno de R$ 7 mil”, lembra. “Os planos eram ficarmos por tempo indeterminado no país e ir ao Brasil a passeio a cada quatro, cinco anos”, reforça. 

F. com a família em um parque aquático, em Manila. Momentos de diversão eram raros.

Tudo mudou, no entanto, em 21 de julho de 2024, quando o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos Júnior, ordenou o fechamento de todos os cassinos on-line que funcionavam no país. A medida foi tomada diante da ligação das plataformas com o tráfico humano, trabalho análogo à escravidão, golpes e até com o crime organizado chinês.

O decreto presidencial determinou que os pogos (como são conhecidas as plataformas de jogos de azar on-line nas Filipinas) encerrassem suas atividades no país até 15 de novembro de 2024 e que todos os estrangeiros que trabalhassem na atividade deixassem o território filipino até 31 de dezembro do mesmo ano. “Muitas empresas saíram no último dia e muitos funcionários também, mas uma grande parte deles não conseguiu. Eu fui um dos que não conseguiu”, explica F., que assim como os outros teve o visto de trabalho revogado imediatamente após a decisão. 

O brasileiro destaca que ele estava em uma situação ainda pior, já que havia sido demitido um pouco antes do decreto, em junho de 2024, após uma reportagem veiculada em uma emissora nacional denunciar que brasileiros estavam trabalhando em condições análogas à escravidão em cassinos on-line no Laos, também no Sudeste Asiático. “Veio uma ordem de cima para demitir todos os brasileiros”, acrescenta. Sem trabalho e com os recursos cada vez mais escassos, começava a saga para tentar deixar as Filipinas. 

O pedido de ajuda 

Em 10 de outubro de 2024, F. publicou em suas redes sociais um vídeo no qual pedia ajuda financeira. “A ideia era fazer com que o vídeo viralizasse e chegasse a alguma autoridade brasileira ou a algum influencer que se sensibilizasse e pagasse as nossas passagens”, recorda.  

O vídeo não chegou diretamente a uma autoridade do Governo brasileiro, mas sim a um velho amigo da igreja evangélica que F. frequentava no Brasil, o pastor guineense Luís Mantampa. Foi ele quem intermediou o contato entre a família e o promotor de Justiça do MP do Ceará, Germano Rodrigues. 

Transcrição: “Quando eu posto o vídeo, aí passaram-se alguns dias e um pastor amigo meu daqui de Fortaleza entra em contato comigo pelo Facebook. ‘Paz do Senhor. Pastor Luís Mantampa. Lembra de mim?’ Aí eu: ‘meu amigo, eu não tenho como lhe esquecer’. Porque nós fizemos muitos trabalhos de missões aqui em algumas cidades do interior do Ceará. E ele: ‘cara, acabei de ver teu vídeo. Como vocês tão?’ Expliquei a situação para ele e ele: ‘deixa eu te fazer uma pergunta: alguém grande do governo já falou contigo, alguém grande do governo entrou em contato contigo e ouviu a tua história?’ E eu falei: ‘não, amigo, eu postei recente. E a gente tá tentando fazer com que o vídeo venha a viralizar e chegue a alguém e que esse alguém possa nos ajudar de alguma forma’. Aí foi quando ele falou pra mim: ‘eu tive recentemente na inauguração do posto humanizado lá no aeroporto Pinto Martins e lá eu conheci algumas pessoas grandes do governo e eu conheci um promotor de Justiça, doutor Germano Rodrigues. Posso passar o seu contato para ele e explicar um pouco da sua história?’. Aí eu falei assim: ‘meu amigo, você não precisa nem me perguntar, você deve. Você tem total aval, você tem total liberdade para fazer isso’. E ele vai, e eu: ‘Ok. Obrigado. Paz do Senhor’. Terminamos, finalizamos a nossa conversa e coisa de acho que horas. Não foram nem dias, foram horas. O doutor Germano entra em contato comigo”.

F. e Germano passaram a se falar constantemente e, no dia 5 de novembro de 2024, o promotor de Justiça realizou uma audiência virtual com a família. “Conversei com o casal, com a idosa e com as duas crianças. Pude ver um pouquinho do ambiente doméstico e atestei a realidade dura que eles estavam passando”, resume Germano Rodrigues. 

Além do risco de F. ser preso e deportado, a família estava em situação de insegurança alimentar, explica o promotor de Justiça. “A idosa também necessitava de alguns medicamentos, já que possui algumas comorbidades. Por isso, resolvi atuar, com o viés centralizado nos direitos da pessoa idosa”, ressalta, pontuando que, neste caso, o MP estadual poderia garantir que os direitos humanos previstos em convenções internacionais fossem respeitados, área diferente da que o Ministério Público Federal atua, por exemplo. “Não acionamos o MPF porque não se tratava de assunto de regularidade migratória. Não era o caso de um estrangeiro no Brasil, mas de um brasileiro no exterior”, explica. 

A atuação do MP 

Promotor de Justiça do MP do Ceará há 27 anos, Germano Rodrigues atua na defesa da pessoa idosa na capital cearense desde 2016. Na área acadêmica, no entanto, suas pesquisas estão focadas em uma outra área: refugiados e migrantes. Buscando aprender mais sobre o assunto e chamar atenção para a questão no Ministério Público cearense, ele solicitou à Procuradoria Geral de Justiça autorização para participar da 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatrídia. Organizado pelo Ministério da Justiça, o evento ocorreu em Brasília nos dias 8, 9 e 10 de de novembro de 2024. “Agradeço ao fato de o procurador-geral de Justiça ter me autorizado a participar desse evento, que normalmente os MPs estaduais não participam. Voltei de lá com o arcabouço teórico que precisava para seguir com o caso”, reforça. 

Com o apoio da PGJ, Germano Rodrigues seguiu adiante com o caso, utilizando-se do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e de princípios do Direito Internacional.  

O promotor de Justiça levou em conta o que determina o artigo 74 do estatuto. A legislação destaca que deve ser assegurado à pessoa idosa o acesso às ações e serviços de saúde; atendimento especializado em caso de deficiência ou limitação incapacitante (caso da sogra de F.); e serviço de assistência social visando ao amparo da mesma.

O MP comunicou o caso ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) e à Secretaria de Direitos Humanos do Ceará (Sedih) no dia 11 de novembro, reforçando a necessidade de repatriação da família. “O Governo Federal tem as suas políticas de repatriação. O que fizemos foi requisitá-las”, pontua o promotor.

Enquanto aguardava uma resposta dos órgãos acionados, Germano permanecia em contato constante com F., que se emociona ao relembrar a solidariedade do promotor de Justiça.

O membro do MP do Ceará destaca que as doações não eram só dele, mas de uma rede de apoio que se sensibilizou com a situação da família. “Eu agradeço a todo mundo que se envolveu com a história e fez as doações. Com elas, a família conseguiu custear as demandas pessoais, como água, luz, alimentação e remédios, especialmente para a idosa”, salienta.

Equipe da 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza durante expediente de trabalho.

Em 2 de dezembro de 2024, o Itamaraty respondeu ao pedido do MP do Ceará dando ciência que passaria a acompanhar o caso. No mesmo mês, a Secretaria de Direitos Humanos do Estado (Sedih) informou ao MP que prestaria o suporte necessário para que a família fosse repatriada em segurança. Para que o governo brasileiro pagasse as passagens aéreas, entretanto, era necessário que a Defensoria Pública da União (DPU) atestasse a hipossuficiência financeira da família. Solicitado pelo MP do Ceará e pela Sedih em 17 de dezembro, o documento foi remetido ao Itamaraty dois dias depois e os cerca de R$ 42 mil para a compra dos bilhetes foram liberados no dia 27 de dezembro. Começava ali a última etapa do processo: a repatriação. 

A volta para casa 

Com as passagens compradas para o dia 4 de janeiro de 2025, F. procurou o Departamento de Imigração das Filipinas acompanhado de um funcionário da Embaixada do Brasil para regularizar a situação da família. No local, foi informado que, pelo decreto presidencial, deveria sair do país até o dia 31 de dezembro. “Fiquei bastante preocupado e com medo de perder as passagens”, comenta.  

Ao recorrer ao Departamento das Relações Exteriores das Filipinas já no dia 2 de janeiro de 2025, ele finalmente conseguiu a liberação para sair do país, não antes sem ter que escrever de próprio punho uma carta em que pedia sua deportação voluntária. Assim, no dia 4 de janeiro de 2025, iniciava a jornada de volta para casa, trazendo na bagagem memórias de dias de incertezas, esperança e uma nova integrante da família, a cadelinha Aurora, de oito meses. “Nas horas mais difíceis, ela foi a nossa alegria. Eram nesses momentos que nós sorríamos em família. Então acabamos criando um vínculo emocional muito forte com ela”, salienta F. 

Família aguardando o embarque ainda nas Filipinas, acompanhada de um funcionário da embaixada brasileira. Nos braços do filho mais velho, a cadelinha Aurora. 

No dia seguinte, a família chegou a São Paulo, onde embarcou em outro voo até Fortaleza. A viagem foi articulada pela Sedih e custeada por organizações da sociedade civil atuantes na causa. Os cearenses estão entre as 699 pessoas atendidas em 2024 pelo Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, da Secretaria dos Direitos Humanos. Criada em 2019, a política pública busca acolher esse público que chega ao estado e também cearenses que se encontram em situação de vulnerabilidade no exterior. A atuação vai desde a regularização documental até o acesso a direitos como saúde, educação, trabalho, assistência social e habitação.

Jamina Teles ressalta que o programa busca não só acolher, mas dar autonomia ao migrante.

Na madrugada do dia 6 de janeiro, finalmente os cearenses chegaram a Fortaleza, sendo recebidos por familiares e pelo promotor de Justiça Germano Rodrigues no aeroporto Pinto Martins. “Eu particularmente estava bem tranquilo, porque sei que quando um brasileiro retorna ao nosso espaço aéreo, as coisas ficam mais fáceis. A nossa legislação imigratória é muito mais flexível do que a filipina, sem contar que a família não estava vindo em condição imigratória irregular”, frisa Germano. Já para toda a família, o momento foi emocionante. “Eu abracei meu pai, minha mãe, minhas irmãs, mas quando eu olhei para o lado e vi o doutor Germano, na mesma hora caiu a ficha e ali sim eu me emocionei”, confessa F. 

Chegada da família a Fortaleza. Promotor Germano Rodrigues os recebeu acompanhado da esposa.

O recomeço 

Os primeiros dias na capital cearense têm sido de recomeços para F., que atualmente mora com a família em uma casa cedida por uma irmã. Eles seguem sendo acompanhados pelo MP e pela Sedih, que vêm dando assistência desde o desembarque.

Para o promotor de Justiça Germano Rodrigues, o caso serviu para alertar sobre a necessidade das instituições brasileiras se capacitarem sobre o tema das migrações e dos refugiados. “O mundo está cada vez menor e essa realidade mais perto de nós”, e destaca que, em casos como o da família repatriada, ter empatia é essencial. “Se fosse um parente seu, um irmão seu, seu pai, como é que você se sentiria se estivesse diante de uma situação dessa? Então, penso que esse sentimento deu um combustível a mais a nossa atuação”, enfatiza. 

Depois de tudo o que viveu, F. tem algumas certezas. Quer passar mais tempo com a família, voltar a estudar e participar mais ativamente das ações da igreja. “Vamos nos reerguer novamente”, finaliza. 



Essa reportagem é uma produção da Secretaria de Comunicação do Ministério Público do Estado do Ceará.