Sob uma casa de taipa na zona rural do município de Pentecoste, a 91km de Fortaleza, quatro irmãos idosos sobreviviam à própria sorte. Sem água encanada nem banheiro adequado e comendo apenas uma vez ao dia, eles corriam risco de vida. Graças ao trabalho do Ministério Público do Estado do Ceará, em parceria com a Rede de Proteção Social do município, dois dos irmãos foram transferidos, no dia 4 de julho de 2025, para uma Instituição de Longa Permanência para Idosos em Maranguape, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza, distante 93km de Pentecoste. Tiveram a dignidade de volta, restaurando vidas marcadas pelo tempo e pelo abandono.
“Primeiro tentamos buscar a rede de apoio, localizar uma família extensa para esses idosos, mas quando vislumbramos que isso não era possível, partimos para a última possibilidade, que era o acolhimento”, ressalta a promotora de Justiça Lara Dourado, titular da Promotoria de Justiça de Pentecoste. Para o caso chegar ao Ministério Público, no entanto, alguém teria que descobri-lo (e denunciá-lo).
A cerca de 50 km da sede de Pentecoste, casas espaçadas expõem a vida na zona rural do município. Lá, a comunidade de Arisco Mororó, no Distrito de Porfírio Sampaio, resiste ao tempo. Às margens da estrada de terra, avista- se a casa com as paredes de taipa, a velha cisterna, as telhas cansadas. Tudo parece descaso, omissão, negligência. Ao se deparar com a situação, uma agente comunitária de saúde que trabalhava naquela região resolveu bater à porta. Ao entrar, percebeu que o interior guardava muito mais desamparo do que o lado de fora. Era setembro de 2023.
Comunicado pela agente de saúde da situação, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Pentecoste resolveu agir e, já no mês seguinte, iniciou a série de peregrinações à residência dos idosos.
A estrutura da casa é precária. Alimentação quase não tinha. Uma situação de vulnerabilidade evidente”
Entre outubro de 2023 e setembro de 2024, a equipe do CREAS tentou, por diversas vezes, contato com aquela que seria a responsável pelos quatro idosos, mas ela nunca compareceu à sede do órgão para prestar informações. A suspeita era de que a mulher, filha adotiva de uma das idosas, estaria desviando, para proveito próprio, os recursos que os quatro recebiam de aposentadoria ou Benefício de Prestação Continuada (BPC). Todos os idosos teriam, ainda, empréstimos consignados em seus nomes, o que comprometia a renda e a subsistência do grupo. Diante da situação, denunciada até mesmo por outros membros da família das vítimas, não havia dúvidas: seria necessário acionar o Ministério Público.
Em 11 de setembro de 2024, a Promotoria de Justiça de Pentecoste instaurou um procedimento para acompanhar o caso. “Passamos a trabalhar conjuntamente com o CREAS e com o CRAS [Centro de Referência de Assistência Social] para tentar dar mais qualidade de vida a eles”, reforça a promotora de Justiça Lara Dourado, que chegou a se reunir, no dia 3 de dezembro do ano passado, com a suspeita de estar desviando os recursos. À época, ela prometeu se mudar para morar definitivamente com os idosos até o fim daquele mês.
Não foi o que ocorreu. Em nova visita do CREAS, em 21 de fevereiro de 2025, a própria mãe da suspeita confirmou que ela só vinha ao local para buscar os cartões e ir receber os benefícios. Permaneciam à própria sorte, os irmãos A.C.S, de 73 anos; F.C.S, de 64 anos; R.M.C, de 82 anos; e R.C.S., de 71 anos. Com os quatro, ainda morava R.C.S., de 47 anos, que, por ter deficiência intelectual, também recebia BPC e, assim como os outros, tinha um empréstimo consignado em seu nome.
Idosos viviam em situação de vulnerabilidade na zona rural de Pentecoste.
Buscando aprofundar ainda mais atuação no caso, a promotora de Justiça Lara Dourado solicitou apoio do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Cidadania (Caocidadania), órgão do MP do Ceará que presta auxílio aos membros que atuam na defesa da Pessoa Idosa, da Pessoa com Deficiência, entre outras áreas.
Já com o apoio da assistente social do Caocidadania, Rejane Sales, a equipe do CREAS fez outras duas visitas aos idosos nos dias 27 de maio e 23 de junho deste ano. Na primeira inspeção, Rejane se surpreendeu com a grande quantidade de abelhas no interior da casa. “Mesmo com o calor, uma das idosas estava toda coberta e, quando perguntamos o motivo, ela disse que era para não ser picada”, destaca. Dois dos outros idosos também aparentavam estar bem debilitados. R.M.C, o mais velho dos quatro, disse estar com um mal-estar porque comia pouco ao longo do dia, enquanto R.C.S. já não se comunicava verbalmente, tendo passado todo o tempo em que Rejane e a equipe do CREAS estiveram no local deitada em uma rede.
“Eu trabalhava na roça. Fazia muita coisa. Agora que estou velho não consigo mais.”
O relatório produzido pela assistente social do Caocidadania à Promotoria de Justiça de Pentecoste só confirmou o que já era esperado: os idosos estavam em situação de abandono na casa em que residiam. “Todas as questões que levantamos, objetivamente, demonstravam que aquelas pessoas não estavam obtendo os cuidados que um idoso necessita”, pontua a profissional.
Com todas as outras possibilidades esgotadas, coube ao Ministério Público pedir, no dia 24 de junho, a instauração de inquérito policial para investigar os supostos crimes de exploração patrimonial e retenção indevida de documentos e cartões bancários por parte da filha da idosa F.C.S. O MP entrou ainda com uma Ação Civil Pública para garantir que os três idosos que estavam debilitados e sem a capacidade civil plena de tomar decisões pudessem ser transferidos para uma Instituição de Longa Permanência (ILPI). Era o começo do recomeço.
Em 2 de julho de 2025, a autorização judicial para que os três irmãos fossem transferidos para uma ILPI foi concedida. Dois dias depois, a equipe do CREAS, acompanhada da Polícia Militar, regressou à comunidade de Arisco Mororó para resgatar as vidas. A.C.S e R.M.C aceitaram a ajuda, mas R.C.S pediu para ficar, tendo seu desejo atendido. “Como ela manifestou expressamente essa vontade e teve a capacidade de escolher por si, não fizemos o abrigamento”, frisa a promotora de Justiça Lara Dourado.
O destino foi o Instituto dos Pobres, na cidade de Maranguape. A instituição é administrada pelas Irmãos Missionárias Capuchinhas. Com 82 anos de história, o lar acolhe atualmente cerca de 75 idosos e se mantém com recursos dos que lá residem e doações, além da renda obtida em eventos beneficentes.
Irmã Charla Cuesta, Coordenadora Instituto dos Pobres de Maranguape
A transferência só foi possível graças à atuação da Promotoria de Justiça de Pentecoste e o apoio do Caocidadania, que fizeram a intermediação junto à instituição. “Esse trabalho para aquisição de vagas tem sido árduo, mas felizmente conseguimos contar com o apoio das irmãs”, lembra Rejane Sales, pontuando que no Ceará há apenas uma ILPI pública: o Lar Olavo Bilac, em Fortaleza, sem vagas disponíveis.
Agora em segurança e com a dignidade restaurada, os irmãos resgatados passaram a se alimentar seis vezes ao dia e tomar as medicações nos horários corretos. Os dois estão sendo acompanhados diariamente pela equipe do instituto, que conta com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, entre outros profissionais. “É nítido que um está subnutrido e a outra está em fase de desnutrição, mas iremos fazer o acompanhamento adequado a partir de agora”, destacou a enfermeira da ILPI, Ingrid Costa, após analisar os exames que os idosos haviam feito antes mesmo da transferência ocorrer.
Instituto dos Pobres busca promover um ambiente acolhedor para os acolhidos.
Enquanto os dois recomeçam a vida com mais dignidade, o caso segue sendo acompanhado pelo MP do Ceará. “Ao final da investigação que está sendo conduzida pela Delegacia de Pentecoste, os autos vão voltar ao Ministério Público para o oferecimento ou não de denúncia”, pontua a promotora de Justiça Lara Dourado, que, juntamente com o CREAS, segue monitorando a situação das duas idosas e da pessoa com deficiência que permaneceram na casa.
Telefone: (85) 2130-0740
WhatsApp: (85) 98904-5644
Instagram: @institutodospobres
Reportagem e fotografia: Émerson Rodrigues
Vídeos: Émerson Rodrigues e Gabriel Redz
Edição de texto: Camila Rocha, Marco da Escóssia e Reginaldo Aguiar
Edição de imagens: Gabriel Redz e Kléber A. Gonçalves
Diagramação: Emanoel Oliveira
Design: Pedro Henrique D’Leon
Essa reportagem é uma produção da Secretaria de Comunicação do Ministério Público do Estado do Ceará.