Omissão do dever de agir é a base da acusação feita pelo MPCE no segundo julgamento da Chacina do Curió  


Na noite do dia 11 e madrugada de 12 de novembro de 2015, data da Chacina do Curió, três viaturas da Polícia Militar estavam de serviço na Grande Messejana, em Fortaleza, região onde os crimes ocorreram. As composições foram acionadas pela Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) para atender aos apelos da população que ligava insistentemente em busca de socorro para as vítimas. As chamadas eram de moradores dos bairros Curió, Barroso, São Miguel e Lagoa Redonda. Contudo, segundo tese defendida pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), oito policiais militares que estavam de serviço na região ignoraram as demandas, deram informação falsa à central e, assumindo o risco do resultado, não prestaram qualquer tipo de socorro ou atendimento às vítimas. De acordo com o MP, as circunstâncias caracterizam omissão do dever de agir, crime pelo qual os policiais estão sendo julgados na segunda sessão do júri da Chacina do Curió, iniciada no dia 29 de agosto.  

Os acusados são Thiago Aurélio de Souza Augusto, Thiago Veríssimo Andrade Batista Carvalho, Gerson Vitoriano Carvalho, Gaudioso Menezes de Matos Brito Goes, Josiel Silveira Gomes, José Haroldo Uchoa Gomes, Ronaldo da Silva Lima e Francinildo José da Silva Nascimento.  

Viatura 1072 

A responsabilização dos policiais militares Thiago Aurélio e Ronaldo Silva se configurou na madrugada de 12 de novembro de 2015, quando circulavam na viatura 1072. No momento em que aconteceram os crimes contra Francisco Elenildo Pereira Chagas, Jadson Alexandre de Sousa e Valmir Pereira da Conceição, a composição foi acionada pela Ciops, mas não compareceu ao local das ocorrências, a Avenida Odilon Guimarães, esquina com Rua Elza Leite de Albuquerque, no bairro São Miguel.  

 Os crimes aconteceram no intervalo de 20 minutos, entre 0h55 e 1h15 da madrugada. Durante esse tempo, segundo registros oficiais da Ciops, várias chamadas foram realizadas para a viatura da composição. Porém, os policiais só estabeleceram contato com a central à 1h24. Na ocasião, eles informaram que haviam ido ao local, mas nada encontraram. Segundo testemunhas, os PMs só apareceram na Rua Elza Leite de Albuquerque às 2h15, pelo menos uma hora depois das mortes. De acordo com auditoria realizada no rastreamento do veículo, junto aos sistemas do Ciops, devido à falsa informação repassada pelos policiais, “o operador finalizou a ocorrência no sistema, o que resultou na invisibilidade, inclusive, dos eventos subsequentes, uma vez que o evento deixou de ser acompanhado pela Ciops”.  

 A conduta dos policiais caracterizou, portanto, “omissão propositada”, como classifica a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Ceará. Um fato grave nesse contexto é que, à 1h45, foi registrado retorno de homens encapuzados à Rua Elza Leite de Albuquerque, onde foram executados Francisco Elenildo Pereira Chagas, Jadson Alexandre de Sousa e Valmir Pereira da Conceição. No entendimento do MP, “os policiais militares não só se omitiram do dever legal de prestar socorro e impedir novos ataques no local, como também participaram, em concurso, na prática dos homicídios”.  

Viatura 1069 

Em outra viatura que circulava na área, a 1069, estava o efetivo formado pelos policiais José Haroldo Uchoa Gomes, Francinildo José da Silva Nascimento e Gaudioso Menezes de Matos Brito Goes. À 0h35 da madrugada de 12 de novembro, a Ciops acionou a composição para apurar a ocorrência de disparos de arma de fogo no bairro Curió, nas ruas Engenheira Maria e a George Sosa, esquina com Lúcia Sabóia. Provas técnicas descritas na denúncia elaborada pelo MPCE revelam que, após a ligação da Ciops, a composição deslocou-se para o sentido inverso ao indicado pela central e logo informou que não havia encontrado o local.  

A conduta se repetiu à 1h12, quando mais uma vez a viatura 1069 foi acionada para apurar ocorrência na Rua Neném Arruda, esquina com Santa Rita. Novamente os mesmos policiais informaram que haviam percorrido todo o logradouro e nada encontraram. Entretanto, nos dois casos, as coordenadas registradas pelo sistema na viatura não condizem com os locais indicados pelos policiais à Ciops.   

 Além disso, à 00h53, a composição passou pela Rua Lucimar de Oliveira, local onde quatro pessoas foram executadas e uma outra foi lesionada. Câmeras de segurança dispostas no local registraram o momento em que a composição passou pelo lugar, quando os corpos já estavam estendidos na calçada. Mais uma vez a situação revela que os policiais ignoraram a situação, se omitiram do dever de agir e não prestaram socorro às vítimas. A Rua Lucimar de Oliveira reuniu o maior número de mortes conjuntas naquela madrugada. Ali foram executados Antônio Alisson Inácio Cardoso, Jardel Lima dos Santos, Pedro Alcântara Barroso Nascimento Filho e Alef Souza Cavalcante. O sobrevivente só não foi a óbito por motivo alheio à vontade dos executores.  

A mesma viatura, por volta de 1h44 da madrugada, passou pelo cruzamento da Avenida Odilon Magalhães com Rua Elza Leite de Albuquerque, acompanhada de outros veículos, todos com o pisca-alerta ligado. A atitude, no entendimento do Ministério Público, é “claramente comprobatória de que os referidos policiais militares integraram o grupo que participou da chacina”. Assim, conforme a denúncia do MP, José Haroldo Uchoa Gomes, Francinildo José da Silva Nascimento e Gaudioso Menezes de Matos Brito Goes “se omitiram, de forma dolosa, com intuito claro de proporcionar um ambiente que possibilitasse as práticas delituosas que estavam sendo praticadas na Grande Messejana, a tudo anuindo sem qualquer oposição”.   

Viatura 1307 

Os policiais Gerson Vitoriano Carvalho, Josiel Silveira Gomes e Thiago Veríssimo Andrade Batista de Carvalho estavam de serviço desde a noite de 11 de novembro até o fim da madrugada de 12 de novembro de 2015, compondo a viatura 1307. Imagens de câmera de segurança comprovam que a viatura também passou pela Rua Lucimar de Oliveira, à 0h52, com as luzes intermitentes desligadas, quando cinco jovens estavam na calçada – quatro executados e um lesionado. O sistema que registra o deslocamento dos veículos também comprovou a presença da RD 1307 no local.   

Antes disso, a Ciops já havia entrado em contato com a composição para os policiais verificarem a presença de um veículo com suspeitos circulando na região. O monitoramento indica que a viatura estava nas imediações no momento em que foi acionada, contudo, nenhuma diligência foi empreendida no sentido de verificar a denúncia. Os fatos novamente evidenciam que os policiais “se omitiram dolosamente do dever de agir e contribuíram para a efetivação das ações delituosas e, dessa maneira, concorreram para a consumação da chacina.  

 Áudios  

 O 190 é o número do telefone da Polícia Militar para o qual se deve ligar em caso de necessidade imediata ou socorro rápido. Ao receber chamados na noite e madrugada de 11 e 12 de novembro de 2015, respectivamente, operadores da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) acionaram viaturas e deram informações preliminares repassadas pela população. Em áudios oficiais que compuseram a denúncia formulada pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) é possível verificar o desespero da população e as primeiras desconfianças de moradores dos bairros Curió, Messejana, Barroso e Lagoa Redonda de que a ação estava sendo conduzida e realizada por policiais.  

 Em uma ligação que durou 3min04seg, uma mulher relatava que estava “acontecendo um tiroteio grande” e que ela própria achava que era a polícia. “Mas é um grupo de extermínio. Já mataram quatro pessoas aqui, tirando de dentro de casa e matando. Não sei o que está acontecendo”, disse, em evidente sinal de desespero. O operador pede para a mulher repetir e ela informa que é “a Polícia num carro preto” e que ela estava perto do Hospital Gonzaguinha de Messejana, na Rua Neném Arruda, no bairro São Miguel, Grande Messejana. Na sequência, o operador confere as informações e diz que pedirá para uma equipe ir ao local com urgência.  

 Em uma outra gravação, de 1min08seg, uma atendente fala com um homem que disse já ter ligado mais de 30 vezes para o 190 naquela madrugada. Em desespero, ele informa que estava na Rua Elza Leite de Albuquerque e que uma viatura havia ido ao local, mas somente até a esquina. Novamente ele relata o local e a necessidade de a polícia ir até a Rua Elza Leite de Albuquerque. Diante das informações, a atendente informa que registrou a chamada como pedido de urgência; “Pronto, senhor. Foi pedida a urgência. Só aguardar”, avisou a atendente. Na sequência, o homem responde: “Estamos esperando aqui direto. Esperando aqui, senhora, pelo amor de Deus”.  

 Legislação  

 O Código Penal Brasileiro define como omissão deixar de prestar assistência, sem que isso ofereça risco, à pessoa inválida, ferida ou em situação de grave e iminente perigo. Na madrugada de 11 para 12 de novembro de 2005, não só as 11 vítimas da Chacina do Curió estavam nessa situação, mas sobreviventes e testemunhas que buscaram socorro junto aos órgãos de segurança. Os oito acusados serão julgados pelos crimes de homicídio por omissão imprópria, referente a 11 vítimas executadas, e tentativa de homicídio por omissão imprópria, em relação às três vítimas lesionadas, mas que sobreviveram.  

 Segundo a legislação, a omissão imprópria ocorre quando um agente, imbuído da obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, deixa de agir para evitar o crime. Nesse caso, o dever tem como fundamento legal evitar um resultado concreto. Assim, o agente não tem simplesmente a obrigação de agir, mas a obrigação de agir para evitar um resultado, ou seja, atuar de modo a impedir a ocorrência de determinado evento.  

 De acordo com o artigo 13, parágrafo 2º do Código Penal, a omissão é penalmente relevante quando o agente devia e podia agir para evitar o resultado, mas não o fez. O Código descreve três situações como dever de agir: quem tem por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; quem assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e quem, com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Assim, se o agente da segurança pública, estando de serviço, presenciar um crime sendo cometido e não atuar conforme a legislação, poderá responder criminalmente por omissão, uma vez que a conduta omissa pode trazer consequências fatais para a vítima. 

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