O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (GAECO), obteve junto à Vara de Delitos de Organizações Criminosas (VDOC), da Justiça Estadual, o deferimento de parte das medidas cautelares solicitadas após denúncia contra organização criminosa formada por delegadas, inspetores, um ex-inspetor e um escrivão da Polícia Civil do Ceará, além de informantes e traficantes a eles vinculados. A decisão da Vara de Delitos de Organizações Criminosas foi tomada no último dia 17 de setembro e seguiu em sigilo judicial até a manhã desta segunda-feira (27/09). A denúncia do MPCE foi oferecida no dia 18 de agosto de 2021.
De acordo com o despacho dos magistrados da VDOC, foram deferidos os pedidos de afastamento da função pública de todos os policiais acusados, além de quebra de sigilo telemático dos aparelhos de onde as conversas interceptadas durante a investigação foram trocadas, e ainda quebra de sigilo bancário, busca e apreensão nas residências e locais de trabalho de parte dos acusados e ainda o uso de tornozeleira eletrônica.
A decisão judicial atinge, em alguma medida, todos os 32 acusados de integrar a organização criminosa, composta por 22 inspetores da Polícia Civil do Ceará, 01 escrivão da Polícia Civil do Ceará, 02 delegadas da Polícia Civil do Ceará, 01 ex-inspetor da Polícia Civil do Ceará (atualmente delegado da Polícia Civil do Piauí) e 06 civis (informantes e traficantes). A maioria dos denunciados atuava junto à Divisão de Combate de Tráfico de Drogas (DCTD), da Polícia Civil do Estado.
Entre os crimes atribuídos aos acusados estão os de tortura, extorsão, tráfico de drogas, peculato, prevaricação, denunciação caluniosa, falsidade ideológica, falso testemunho, abuso de autoridade, fraude processual, entre outros. A denúncia do GAECO/MPCE traz o relato detalhado de 26 fatos, ocorridos entre os anos de 2016, 2017 e 2018, em Fortaleza e Região Metropolitana.
Entenda o caso
A investigação do GAECO/MPCE, em parceria com a Coordenadoria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, revelou a existência e atuação de uma ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, assim definida nos termos do §1º, do art. 1º, da Lei nº 12.850/2013, instalada e atuante na Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas – DCTD (DENARC), da Polícia Civil do Ceará, formada eminentemente por policiais civis (Delegadas e Inspetores) e informantes, e direcionada à obtenção de vantagens para os seus integrantes (seja vantagem econômica ou prestígio profissional), através de um ciclo cadenciado e autossustentável de práticas cotidianas de crimes graves.
Os fatos revelam que, por trás da suposta aura de comprometimento e de boa atuação, exaltada em boa parte das prisões protagonizadas por agentes da DCTD, havia, na verdade, uma série de ilegalidades e abusos de poder, com a prática reiterada de crimes graves, tudo sustentado por uma imbricada arquitetura criminosa de cooperação e apoio mútuos, instalada e institucionalizada durante algum tempo naquela Divisão.
No bojo de tal organização, foi identificada a prática dos crimes de tortura, extorsão, tráfico de drogas, peculato, prevaricação, denunciação caluniosa, falsidade ideológica, falso testemunho, abuso de autoridade, fraude processual, entre outros.
Como exemplo da violência e temeridade das ações, em uma das situações descritas, um abordado é claramente torturado no interior de um veículo para que declinasse informações acerca da localização de entorpecentes, e na presença de uma criança. Em um dos áudios, gravados por um agente que estava no veículo e participava das agressões, é possível ouvir o choro da criança e a voz trêmula do abordado.
Parte de dita estrutura criminosa já havia sido desvelada através de investigação levada a cabo pela Polícia Federal (IPL nº 629/2016), o que culminou com a deflagração da primeira fase da operação VEREDA SOMBRIA, em dezembro de 2017, e, posteriormente, já em 2018, no oferecimento de denúncia criminal pelo Ministério Público Federal, dando origem à Ação Penal nº 0809180-48.2018.4.05.8100.
No curso do processo federal, houve decisão de declínio de competência para a Justiça Estadual de alguns fatos ali tratados, bem como houve a decisão de declínio e compartilhamento aos órgãos investigativos estaduais competentes dos demais fatos apurados pela Polícia Federal, através do IPL nº 629/2016 (Processo nº 0000388-75.2017.4.05.8100), e que não tinham sido objeto de denúncia pelo MPF.
Em vista disso e da possibilidade de que no material apreendido na deflagração da Operação VEREDA SOMBRIA existissem ainda dados relacionados a fatos delituosos de competência da Justiça Estadual que não tinham sido objeto da Denúncia oferecida perante à justiça federal, merecendo, portanto, serem analisados e investigados, o GAECO/MPCE instaurou o Procedimento Investigatório Criminal nº 06.2019.00002977-2 para a devida apuração.
A investigação é, então, fruto dessa análise dos telefones celulares pertencentes aos investigados da Operação Vereda Sombria, além da análise de fatos constantes no relatório de interceptação telefônica da Operação Gênesis, denominado Gênesis – Relatório Final – Tomo XXVII, que ainda não haviam sido denunciados.
A apuração empreendida tanto reforçou os contornos iniciais da organização criminosa existente na DCTD, quanto demonstrou que seus tentáculos eram muito mais extensos do que se pensava inicialmente, além de revelar novos e importantes membros até então desconhecidos.
Além de atuar com o objetivo maior de auferimento de vantagens ilícitas, seja financeira, seja profissional, através da prática reiterada de crimes graves, a organização criminosa se valia de apoio político e de uso de mobilização da categoria profissional como forma de obscurecerem a fiscalização de órgãos responsáveis pela lisura do agir policial, tais como o Ministério Público e a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD).
Em grande parte das ações, a execução dos crimes se dava da seguinte forma: através de “informações” privilegiadas repassadas pelos informantes, ou mesmo obtidas de operações em curso na Divisão, o grupo abordava vítimas específicas que pudessem ser “trabalhadas” para o alcance tanto de apreensão de grande quantidade de drogas, quanto de dinheiro para os que integravam a linha de frente das abordagens, tudo com a conivência e proteção das delegadas. O termo “trabalhar”, diga-se, traduz-se em submeter os abordados a intensos sofrimentos físicos e/ou psicológicos, inclusive com o uso constante de filmes plásticos para sufocamento.
Algumas vezes, o próprio abordado ganhava a confiança do grupo e tornava-se parceiro ou informante, inclusive recebendo dinheiro ilícito e drogas desviadas das apreensões como pagamento pelas “informações” repassadas.
Se, por um lado, as grandes apreensões traziam notoriedade e destaque à Divisão e, consequentemente, aos seus gestores (delegadas), por outro, os bastidores dessas operações possibilitavam a obtenção de grandes vantagens patrimoniais para os envolvidos in loco nas abordagens, notadamente Inspetores e informantes, já que estas não cessavam antes do cometimento de crimes e de toda sorte de abuso de autoridade.
Dessa forma, ao passo que as delegadas conseguiam elogios junto à cúpula da segurança pública do Estado e à imprensa, os Inspetores se locupletavam de vantagens financeiras ilícitas e, muitas vezes, de drogas, armas e objetos pessoais das vítimas. Ao fecharem os olhos para os crimes cometidos pelas equipes, as delegadas podiam contar com policiais sempre disponíveis e atuantes, engrenagem fundamental à manutenção do status daquela delegacia especializada, ganhando notoriedade perante a instituição policial como um todo e à sociedade.
Em um dos conjuntos fáticos narrados, onde diversos crimes foram cometidos, dentre eles o de negociar a liberdade de uma menor em troca de drogas, o inspetor-chefe da Divisão informa claramente à delegada que está querendo “negociar droga pela liberdade dela” (menor), momento em que a delegada diz que “Vc tá comandando aí”, dando o aval para que o policial desse seguimento ao ato criminoso. Fica claro que a delegada sabia, de forma inequívoca, que uma adolescente estava sofrendo um sequestro e que sua liberdade dependia de que o restante dos traficantes entregasse mais drogas aos policiais da DCTD, liderados pelo inspetor-chefe. Ainda no mesmo contexto, foi possível perceber que a situação também rendeu dinheiro para os policiais envolvidos, notadamente para o próprio inspetor-chefe e para outro policial civil. O fato é que inspetor-chefe servia a contento aos interesses da delegada.
O segundo escalão da organização era formado por outro inspetor e por outra delegada. O referido inspetor era o homem de confiança da delegada apontada como a líder da organização e o seu principal conselheiro, atuando, mesmo que por vezes à distância, no direcionamento das ações in loco e na prática de diversos crimes, incluindo tortura. Junto aos demais agentes públicos, este outro inspetor se ocupava, também, em difamar e distribuir fotos de servidores da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD), para que todos pudessem, de alguma forma, identificar e desviar-se de possíveis investigações operadas por estes, que consideravam “inimigos”.
Já segunda delegada em questão, enquanto amiga pessoal e braço direito da primeira delegada referida, cooperava diretamente nos desmandos criminosos do grupo, separando e direcionando equipes específicas ao local, anuindo e encorajando as práticas de tortura e crimes correlatos, além de tomar à frente na proteção dos membros da organização criminosa, caso a situação fugisse ao controle em algum momento.
Os demais policiais civis denunciados ora participavam diretamente das ações criminosas, com a prática de torturas, extorsão, tráfico de drogas, abuso de autoridade e peculato, como também intermediavam negociatas com alguns informantes, buscando situações propícias ao cometimento de delitos que ensejassem o alcance dos objetivos da organização criminosa, qual seja, importantes apreensões regadas a práticas de crimes.
Havia ainda o núcleo de informantes da organização criminosa. Pilar importante de sustentação do grupo, estes esmeravam-se em repassar informações aos policiais acerca de traficantes rivais que pudessem render, ao mesmo tempo, importantes apreensões à delegacia e altos ganhos financeiros aos envolvidos. De outra banda, eram os próprios informantes que negociavam diretamente com os traficantes e os atraíam para as abordagens criminosas. Ao final de cada etapa, os informantes eram devidamente remunerados, ou com drogas ou com dinheiro, a depender do apurado da ação. Entre os crimes praticados pelos informantes é possível destacar tortura, usurpação de função pública, posse/porte ilegal de arma de fogo e tráfico de drogas.